A seção de formação desta semana foi redigida por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração, de Mogi das Cruzes/SP, doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), baseada nas leituras da festa do Batismo do Senhor (Is 42, 1- 4.6-7; At 10, 34-38; Mt 3, 13-17).
Com o domingo do Batismo de Jesus, terminará o tempo litúrgico da “manifestação do Senhor”. Iniciado com o primeiro domingo do Advento, este tempo teve seu centro na celebração do Natal e da Epifania, e hoje enfoca o Batismo de Jesus por mãos de João Batista. Este caminho iluminado pela liturgia, nos fez acompanhar o Senhor na sua descida progressiva através da fraqueza humana, feita própria com a sua Encarnação. Desde os primeiros passos no Advento, o coração contemplativo da Igreja teve seu olhar orientado para a páscoa do Senhor, cume da manifestação paradoxal da glória de Cristo no trono da cruz e na luz da Ressurreição. É a Páscoa que ilumina o sentido profundo do mistério da Encarnação e o conduz a seu cumprimento.
O evangelista Mateus nos apresenta a procura de Jesus por João e seu pedido de ser batizado junto com as demais pessoas que se reconhecem pecadoras e querem converter-se a Deus. Essa cena nos é apresentada como uma escolha bem consciente de Jesus. Ele defende esta alternativa mesmo frente às resistências do próprio João, motivando-a como uma obediente submissão de ambos ao projeto do Pai (Mt 3, 13-15). A Palavra de Deus, que por amor assumiu a fragilidade e as contradições da condição humana, quis descer até o fundo dessa situação assumindo sobre si até o pecado, para reconciliar todos e tudo com Deus (cf. Cl 1,20), dando início em si mesmo ao retorno do mundo à ordem e à paz original na submissão perfeita a Deus. “Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus” (2Cr 5,21). “Nas águas é lavado / o celestial cordeiro; / O que não tem pecado / nos lava em si primeiro” (Hino das Vésperas – tempo do Natal a partir da Epifania).
O mergulhar de Jesus nas águas do rio Jordão desenvolve o processo da sua descida na carne (Natal) e antecipa a sua conclusão no “batismo” da sua Paixão e Morte (Páscoa) (cf. Mc 10, 39), com a descida aos infernos, onde o crucificado, que deu sua própria vida por amor, chama novamente Adão e Eva, as raízes simbólicas da existência humana, à vida nova dos resgatados como filhos e filhas de Deus. “Depois de ser batizado, Jesus saiu logo da água”. Com ele é o mundo inteiro que sai das obscuridades do pecado e inicia um novo caminho.
“No seu batismo Jesus é o lugar de contato entre a miséria humana e a misericórdia divina. Em seu coração se desfaz a massa triste do mal realizado pela humanidade e se renova a vida” (Bento XVI, Catequese de 7 de Janeiro, 2009).
Em Jesus, solidário como o Servo Sofredor do Senhor com os homens e as mulheres de todos os tempos em busca de salvação (1ª leitura de Is 42, 1-7), o Pai revela que na realidade “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado” (Mt 3,17). O profeta promete que no futuro, o espírito do Senhor será derramado sobre o Servo do Senhor para atuar sua missão libertadora em favor de Israel e das nações pagãs. Ele tomará cuidado com mansidão, perseverança e fortaleza de todas as situações de fragilidade, pois Deus faz justiça antes de tudo para os pobres (cf. 1ª leitura). Agora esse Espírito desce sobre Jesus na forma simbólica da pomba da paz, que somente o coração filial de Jesus vê descer do Pai e pousar sobre ele (Mt 3, 16). Em Jesus, o filho bem amado, se cumpre plenamente a profecia de Isaías, como o próprio Jesus afirmará no início da sua missão na sinagoga de Nazaré: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da escritura” (Lc 4, 21).
As expectativas de todos os necessitados, prisioneiros de qualquer falha e constrangimento, podem voltar a esperar e enxergar a luz de um novo futuro, pois para todos chegou “o ano da graça do Senhor”, que não tem tempo limitado, mas é oferecido para os homens e as mulheres de todo tempo (cf. Lc 4,18-19).
Eis acontecer no batismo de Jesus a surpreendente revelação do amor sacrificado e criador do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Neste evento a fé da Igreja contempla mais uma vez a santa Trindade enquanto fica atuando o misterioso plano divino de salvação, dentro da história humana, através do Verbo de Deus feito carne. Essa mesma fé nos convida a ficarmos mergulhados nesta mesma comunhão com a santa Trindade, na qual estamos inseridos por força do nosso batismo. Afinal, não fomos nós batizados “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”?
A Igreja do Oriente interpreta muito bem este dinamismo da salvação através da humilhação-glorificação de Jesus no batismo e paixão, por meio da composição dos ícones do batismo de Jesus e da sua ressurreição, composição que exprime na linguagem simbólica da arte o profundo sentido teológico dos mistérios. Nos dois ícones a água do Jordão e a gruta dos infernos apresentam a mesma obscuridade, que Jesus, ao descer nela, penetra e vence com a energia luminosa e transformadora do Espírito Santo, pelo qual é permeado no batismo e ressuscitado da morte.
Os evangelhos dizem que após o batismo, Jesus, “pleno do Espírito Santo, voltou do Jordão; era conduzido pelo Espírito através do deserto durante quarenta dias e tentado pelo diabo” (Lc 4, 1-2). Jesus vive novamente o caminho de Israel no deserto, enfrenta as mesmas tentações, mas ele sai vencedor do diabo enganador, renovando a obediência ao Pai na força que vem da sua palavra e do Espírito.
Logo depois inicia a sua missão anunciando o reino de Deus e a exigência de entrar no seu caminho, manifestando-o já presente na potência da sua palavra e das suas obras de cura e de libertação, atuando num estilo de compaixão e misericórdia. A Igreja, corpo vivo de Cristo, vive desta experiência cotidiana da potência humilde e transformadora do Espírito e da misericórdia do Pai manifestada na mansidão acolhedora de Jesus. Aqui a Igreja reconhece a fonte da sua vida, a sua razão de existir, e o lugar de onde tem de modelar o estilo do seu ministério para anunciar a boa nova aos homens e às mulheres do nosso tempo.
Ela vive no “hoje” de Deus para que todas as pessoas possam gozar da vida plena de Deus a partir das próprias condições, curadas e sanadas pela sua misericórdia. O batismo de Jesus é fonte de graça para todos, mas também critério para examinar a si mesmos sobre a autenticidade do próprio caminho e do próprio serviço ao evangelho.
A liturgia das Horas do tempo da Epifania procura unir e contemplar juntos o evento da Epifania, o batismo de Jesus e a transformação da água em vinho nas núpcias de Caná (Jo 2, 1 -12), como partes de um único processo de revelação da glória de Cristo na humildade da carne. Os textos evangélicos que narram os episódios correspondentes são proclamados nos três domingos sucessivos. Nesta maneira a liturgia destaca também a unidade existencial entre os mistérios celebrados e a nossa experiência cotidiana no caminho da fé.
A antífona do Cântico do Benedictus, nas Laudes do dia da Epifania, canta: “Hoje a Igreja se uniu a seu celeste esposo, porque Cristo lavou no Jordão o pecado [batismo de Jesus]; para as núpcias reais correm magos com presentes [epifania – magos]; e os convivas se alegram com a água feita vinho [núpcias de Caná]. Aleluia”.
Esta magnífica antífona apresenta, numa visão sintética e mística, o mistério da Encarnação e da revelação do Verbo de Deus na expansão das suas potencialidades. É o cumprimento das promessas a Israel (núpcias de Caná – Jo 2, 1-11) e a manifestação universal a todos os povos, culturas e religiões (epifania/magos – Mt 2, 1-12), através da solidariedade de Jesus com o pecado do mundo inteiro (batismo – Mt 3, 13-17) .
Epifania, Batismo e transformação da água em vinho em Caná constituem três painéis de um único trítico, de um único mistério que tem dimensões cósmicas: a celebração das núpcias de Deus com Israel e com toda a humanidade na Encarnação do Verbo e na sua manifestação humilde e potente.
No batismo da cruz, afirma São Paulo, Jesus “prepara e enfeita” a noiva para o casamento que ele está para realizar com a Igreja, e através da Igreja, com toda a humanidade. Ele a purifica de toda mancha, pelo banho do batismo que os cristãos vão receber no seu nome (cf. Ef 5, 25-27).
A purificação ascética e interior e a vida moral que os cristãos são chamados a conduzir, em força do próprio batismo em Cristo, têm a beleza e o sabor da preparação das vestes nupciais da esposa. É um processo interior que exige cuidado de si mesmo, sensibilidade, tempo, acompanhamento por parte de quem tem experiência e conhece a arte de guiar a si mesmo e o caminho dos outros. A arte da vida no Espírito. Crescer na vida espiritual até chegar a seguir, com a apropriada veste nupcial, o Cordeiro que vai festejar suas bodas com a Igreja, exige mais que o batismo pontual: pretende que se aprenda a viver sempre mergulhados nas águas batismais do amor (cf. Ap 7, 9–17). Esta visão da vida cristã proporcionada pela escritura e pela Igreja na liturgia natalina nos dá uma diferença de perspectiva e de pedagogia espiritual. Aqui nasce uma autêntica consciência moral capaz de orientar os cristãos nas escolhas de cada dia, a partir da experiência da transformação interior sustentada pelo Espírito de Jesus, e da relação esponsal com o Senhor, própria dos filhos e filhas de Deus renascidos com Cristo e em Cristo!
O texto da antífona das Laudes da Epifania nos envia ao mesmo tempo às profecias do Antigo Testamento e ao seu cumprimento definitivo no éscaton do Apocalipse.
Os profetas descreveram a relação do Senhor para com Israel em termos de relação nupcial estipulada por iniciativa gratuita do mesmo Senhor. Ele chega a renovar a sua esposa – depois das repetidas traições que esta cometeu – reconstituindo até sua virgindade e oferecendo-lhe como dote atitudes interiores autênticas (cf. Os 2, 16; 21-22).
São João chama de “primeiro sinal” o gesto da transformação da água em vinho, cumprido por Jesus nas núpcias de parentes ou amigos em Caná, e acrescenta que “neste gesto Jesus manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele” (Jo 2,11).
Jesus é o “esposo” que cumpre finalmente aquela “aliança nova e eterna”, aquele “casamento inabalável” entre Deus e o novo Israel/humanidade preanunciado pelos profetas e inscrito no coração pelo Espírito de Deus (Jr 31, 31-34; Ez 36,26-27). A transformação da água em vinho, e vinho de ótima qualidade, diz simbolicamente a passagem definitiva da antiga à nova e perfeita aliança!
O batismo de Jesus – enquanto expressão da sua submissão ao Pai no amor e da sua solidariedade com o pecado dos homens – assim como o nosso encontro na fé e no batismo com Cristo, são eventos dinâmicos, um processo aberto. Jesus foi impelido pelo seu batismo até a cruz. O nosso batismo está sendo atuado com o progresso da nossa transformação nele e do nosso empenho a transformar a realidade em que vivemos.
Nos momentos mais significativos da vida da comunidade, como a grande Vigília pascal, ou periodicamente nos domingos, renovamos as promessas do nosso batismo, como confirmação e desenvolvimento da nossa participação no dinamismo renovador do batismo e da páscoa de Cristo, no “hoje” sempre novo de Deus.
Que o Senhor nos conceda chegar a cantar de verdade, em primeira pessoa, e em comunhão com a Igreja e a humanidade inteira: “Hoje a Igreja se uniu a seu celeste esposo, porque Cristo lavou no Jordão o pecado; para as núpcias reais correm magos com presentes; e os convivas se alegram com a água feita vinho. Aleluia”.
Dom Emanuele Bargellini
Monge Beneditino Camaldolense
Prior do Mosteiro da Transfiguração, Mogi das Cruzes/SP
Fonte: ZENIT
FONTE: http://www.rccbrasil.org.br/artigo.php?artigo=1009
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